No Dia Internacional das Mulheres, comemorado nesta quarta-feira (8), os discursos sobre a posição da mulher nos dias atuais ganham força. Muitas chegam a declarar nas redes sociais que não querem ganhar flores, mas, sim, respeito. Outras comentam que não deveriam ficar em evidência em um único dia, e que gostariam de ser lembradas todos os dias, na luta pela igualdade.
Até as músicas – antigas ou recentes – com trechos considerados politicamente incorretos entram na discussão. O G1 conversou com mulheres que apontaram algumas dessas canções, que as deixam desconfortáveis por conta do conteúdo.
'Amiga da minha mulher'
A atriz e autora Suzana Pires é feminista assumida e estuda sobre o assunto desde a adolescência. Quando pensa em uma letra que considera desagradável, logo lhe vem à cabeça 'Amiga da minha mulher', que tem Seu Jorge como intérprete e é composta por Pretinho da Serrinha, Seu Jorge, Gabriel Moura e Rogê. (Veja trecho)
"Ela é amiga da minha mulher
Pois é, pois é
Mas vive dando em cima de mim
Enfim, enfim
Ainda por cima é uma tremenda gata
Pra piorar minha situação.
Se fosse mulher feia tava tudo certo
Mulher bonita mexe com meu coração
Se fosse mulher feia tava tudo certo
Mulher bonita mexe com meu coração
Não pego, eu pego, não pego, eu pego, não pego não"
"Essa música me dá um embrulho no estômago, não gosto dela. E olha que adoro as músicas que Seu Jorge canta, mas essa traz um desrespeito para as mulheres. Quem é esse cara que acha que é dono da mulher e da amiga dela? Essas situações clichês do machismo precisam ser quebradas para que possamos avançar. Temos 70 anos da evolução feminina, com um número de mulheres empreendedoras maior que o dos homens, entretanto, ainda vivemos no país do coronelismo", ressalta Suzana.
Ela ainda expõe que compositores e autores têm total responsabilidade quando se comunicam com o público. "Se não tivermos ligados nos problemas, vamos continuar repetindo fórmulas erradas. Sou ligada na mulher 360°, que trabalha, cuida da família, estamos em mutação e a mudança está sendo diária. É através da música, da televisão, do teatro que fabricamos o comportamento da sociedade, então temos que estar muito atentos", acrescenta a atriz, que também é uma das autoras da novela 'Sol Nascente'.
A estudante de direito Ingrid Figueiredo, integrante da Marcha Mundial de Mulheres, também cita a letra como machista. "É um machismo bem sutil, mais fácil de se consumir porque não é explícita. Mas o conceito gira em torno de uma não racionalização do homem, como se fosse um animal quando se trata de relação. Agem de acordo com o instinto, ou seja, se for uma mulher atraente, ele vai trair, não vai resistir."
O G1 tentou contato com Seu Jorge, mas assessoria do cantor informou que ele havia chegado de viagem e que não conseguiria atender a imprensa. Pretinho da Serrinha, um dos compositores, diz que ficou surpreso ao saber da reação de algumas mulheres em relação à letra.
"Surpresa total saber que pensam isso da música, nunca ouvi ninguém reclamar. Inclusive, minha esposa é superativista, feminista, e ela seria a primeira a reclamar, a letra nem sairia da minha casa, pois ela vê tudo. Não acho que a canção seja machista, nem que coloque a mulher para baixo. Temos essa preocupação, tenho uma filha de 21 anos, sou casado há 17. Todos os compositores são casados e não temos históricos de letras machistas", garante Pretinho.
O compositor também assegura que não era sua intenção causar desconforto com a música. "Cada pessoa tem um entendimento. Respeito a opinião de quem acha ela machista, mas se entenderam desse jeito, queria explicar que não foi nossa intenção, jamais. Se procurarem por aí, vão ver que existem músicas que realmente falam do pensamento machista, como a 'Fiu-Fiu', da Paula Lima, e 'Quem sabe sou eu', da Iza.
'As mina pira'
A socióloga e professora da UFRJ Veronica Toste, de 35 anos, reflete sobre 'As mina pira', cantada pela dupla sertaneja Fernando e Sorocaba. (Veja a letra)
"Tá tudo programado no apê do Guarujá
Hoje não vai prestar
O churrascão vai comer solto
A "champa" não pode faltar
Liga pra quatro ou cinco amigas
Traz o biquíni
Que hoje o sol tá de rachar
As mina pira, pira
Toma tequila
Sobe na mesa
Pula na piscina
As mina pira, pira
Entra no clima
Tá fácil de pegar
Pra cima!"
"É difícil uma música me incomodar. Aquelas que realmente me parecem perigosas são as que incitam a violência doméstica - tipicamente, as que falam de infidelidade feminina e da violência como forma de vingança justificada - e as que naturalizam o estupro. A música 'As mina pira', da dupla Fernando e Sorocaba, me parece um exemplo perfeito de como a violência sexual pode ser tratada de forma não apenas natural, mas também alegre e festiva. O ritmo animado da música esconde uma letra que parece mais uma receita de como estuprar uma mulher: prepara-se uma festa, convidam as mulheres, a bebida é liberada até que elas fiquem bêbadas e "fáceis de pegar". Aí então o vocalista chama os amigos homens: 'pra cima'', sinaliza Veronica.
A socióloga ainda enfatiza que a questão do consentimento precisa ser discutida com os homens. "Se a mulher acredita estar com amigos, em um lugar seguro para consumir álcool, e um homem procura tirar proveito dessa confiança para fazer com ela algo que ela não consentiria caso estivesse sóbria, isso não tem outro nome: é estupro. Em uma sociedade machista como a nossa, o consumo de bebidas representa um duplo perigo para as mulheres: além de poderem sofrer ataque sexual, elas depois correm o risco de não poder denunciar ou de ter a sua queixa desprezada pela família, amigos e polícia. Afinal, no Brasil é comum a crença de que mulheres que bebem perdem a virtude, a moral e, portanto, 'merecem' ser estupradas. As vítimas acabam sendo culpabilizadas pela própria violência sofrida", salienta.
O cantor Sorocaba, um dos compositores, explica que a música não foi composta com a intenção de ser pejorativa. "Em nenhum sentido. Ela conta a história de uma festa entre amigos, na piscina, com comida, bebida e diversão. A letra não induz à ideia de domínio do homem sobre a mulher e muito menos à ideia de uma orgia. É apenas uma festa, com churrasco, bebida e diversão igualmente usufruída entre ambas partes, com consentimento mútuo de todas as ações. Inclusive, o clipe retrata essa diversão e animação comuns em qualquer festa e/ou encontro de amigos", sugere Sorocaba.
'Lôra burra'
Lorena Vieira, bióloga, de 29 anos, relembra a canção "Lôra burra", composta por Gabriel, o Pensador, nos anos 90. Ela conta que não é feminista, mas que se sente mal ao ouvir a forma como as mulheres são tratadas na canção. (Leia parte da letra)
"Lôra burra, lôra burra
Elas estão em toda parte do meu Rio de Janeiro
E às vezes me interrogo se elas tão no mundo inteiro
À procura de carros
À procura de dinheiro
O lugar dessas cadelas era mesmo no puteiro
Não eu não sou machista
Exigente talvez
Mas eu quero mulheres inteligentes
Não vocês"
"Sei que o cantor quis fazer uma crítica para as mulheres fúteis, mas acho que cada mulher pode e tem a liberdade para escolher o que ela quiser ser, sem precisar ser xingada ou excluída da sociedade por isso. Ser chamada de cadela não é legal em nenhuma ocasião. Já pintei o cabelo de loiro, já segui modismos e nem por isso sou burra ou inferior a outras mulheres", adverte Lorena.
Gabriel, O Pensador, dono da canção, explica ao G1 que a letra é uma crítica à falta de personalidade das mulheres daquela época e que ele as alertava para não seguirem modismos e falava para serem donas de suas próprias ideias, mas que retirou a canção de seu repertório de shows há anos por achar que algumas frases são agressivas."
A alienação me incomodava muito. Fiz a letra de forma chocante, proposital, para sacudir mesmo a mulher, mas tirei do meu repertório porque minha visão mudou muito. Parei de cantá-la em 2003 pelo mal-estar que eu sentia com o exagero que a letra tem, mesmo que a intenção por trás de tudo fosse pedir para as mulheres se valorizarem. Não fui forçado a isso, nem ninguém me pediu para parar de cantar. Apenas não me sentia bem com algumas frases agressivas, então achei melhor parar de cantá-la há muitos anos, muito antes do politicamente correto e o feminismo ganhar força", conta Gabriel.
O cantor ainda ressalta que, atualmente, não teria crítica alguma para fazer às mulheres. "Amadureci. Não estou curtindo mais a letra de Lôra Burra, não combina mais comigo esse jeito de falar certas coisas. Hoje, não critico a mulher que quer exercer sua sexualidade. O moralismo de 20 anos atrás é muito ultrapassado. A mulher pode sair para 'uma noite e nada mais' e está tudo certo. Não tenho mais críticas a fazer a mulher alguma."
'Puxa, agarra e beija'
A transexual Maria Eduarda, de 36 anos, fica incomodada quando escuta os versos da música "Puxa, agarra e beija", que tem como intérprete o grupo Turma do Pagode.
"Se rolar um sinal
Uma olhada que seja
Puxa, agarra e beija
Puxa, agarra e beija
Mordidinha no lábio
Como quem deseja
Puxa, agarra e beija
Puxa, agarra e beija"
"No primeiro trecho, ela diz 'se rolar um sinal, uma olhada que seja'. Ou seja, ao homem seria dado o direito de possuir aquela mulher, essa é a mesma lógica do abusador que diz que culpa é da mulher porque estava usando short muito curto ou porque estava com roupa provocantes. Infelizmente, esse tipo de letra causa um impacto negativo na sociedade estimulando práticas machistas que já deveriam ter sido abolidas", comenta Maria Edauarda.
Ela ainda reforça que a letra deixa evidente o machismo. "É por isso que a música me incomoda, porque ela reforça o machismo e a objetificação do corpo feminino transformando a mulher em uma coisa que, independente de sua vontade, pode ser agarrada, puxada e beijada. As mulheres sofrem com a opressão machista, de homens, alguns embriagados, que se acham no direito de te tocar, de te puxar e de te agarrar. Eu considero isso uma violência a mim e a todas as mulheres, uma vez que na visão deles somos carne para ser escolhida e degustada".
O grupo Turma do Pagode foi procurado para comentar sobre a canção apresentada em seus shows, mas a assessoria do grupo informou que os integrantes estão de férias viajando e não foram localizados até a publicação desta reportagem.
'Mulher não manda em homem'
O pagode "Mulher não manda em homem", cantada pelo grupo Vou pro Sereno, também causa desconforto para Nathália Caetano, publicitária de 22 anos que diz que o pensamento de que a mulher tem que se resumir a tarefas domésticas é antigo e de mau gosto.
"Com tanta roupa suja em casa
Você vive atrás de mim
Mulher foi feita para o tanque
Homem para o botequim
Vê se não me amola
Para com isso mulher
Eu bebo em casa
Ou aonde eu bem quiser
Não vem com essa
De querer vir me buscar
Agora mesmo é que eu não vou
Pra casa descansar"
"As mulheres ocupam cargos iguais aos dos homens, muitas têm rotina dupla, ganham bem. Essa coisa de que a gente tem que ficar em casa lavando roupa no tanque e servindo ao marido ficou lá atrás, nos anos 60. As mulheres têm vida própria, ninguém quer pilotar fogão para encher a barriga de homem", reforça Nathália.
Vocalista do grupo Vou pro Sereno e intérprete da canção, Julio Sereno diz que vê a letra como uma brincadeira.
"Não acho que seja algo ofensivo, vejo como uma grande brincadeira. Hoje, as mulheres ocupam cargos importantes. Nos shows, elas cantam, dançam. Além disso, se um homem falar sério que lugar de mulher é no tanque corre o risco de apanhar ou ser preso. Na segunda parte, a gente troca a palavra e diz que a mulher foi feita para o shopping", esclarece.
Por G1